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Volkswagen e a ditadura militar: “Eu estava trabalhando. Virei para trás, vi uma metralhadora” | Carros

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      São Bernardo do Campo, 28 de julho de 1972. Parecia ser apenas mais um dia de trabalho de Lúcio Antonio Bellentani, à época com 27 anos. Funcionário da Volkswagen do Brasil há quase 8 anos, trabalhava na Ala 4 da principal linha de montagem da montadora.

      Por volta das 23 horas, porém, seu expediente foi inesperadamente interrompido e Lúcio foi levado para o Departamento Pessoal da empresa. Mas de uma maneira que não tinha nenhuma relação com o seu desempenho no trabalho.

      “Eu estava trabalhando no meu posto, quando fui surpreendido com um cano nas costas. Virei para trás, era uma metralhadora. Me algemaram. Tinha lá um policial, o pessoal da segurança da empresa e, num canto, encostado em uma das pilastras, estava o Coronel Ruge. Ele estava lá e estava com uma arma na mão também”. Coronel Rudge era Adhemar Rudge, chefe do departamento de segurança industrial da Volkswagen do Brasil.

      Algemado, Lúcio afirma ter sido levado por três policiais, dois seguranças da empresa e outras duas pessoas à paisana para a Ala 3 do complexo situado na Via Anchieta. “Naquele momento, (…) já recebi tapa, soco, pontapé“, relembra.

      Na sala do Departamento Pessoal descobriu que não havia sido o único funcionário preso naquela noite enquanto trabalhava, já que encontrou seu colega Amauri Danhone na mesma situação. Ele havia sido algemado no setor de serviços. “Dali da fábrica ele foi conduzido para as margens da represa em São Bernardo, onde foi ameaçado várias vezes”, afirma Lúcio a partir do relato feito por Amauri.

      Fábrica da Volkswagen foi palco de prisões de funcionários — Foto: Divulgação

      Àquela altura, Lúcio, Amauri e ao menos outros dez funcionários da Volkswagen do Brasil já poderiam suspeitar do que estava acontecendo. Mas, não da proporção que o caso tomaria. Eles estavam sendo investigados pelos órgãos de repressão da ditadura militar por supostamente agirem contra o regime.

      Agora, sabe-se que a presença de Adhemar Rudge armado dentro da fábrica, no local das prisões, tinha um motivo bastante controverso: a Volkswagen estava ativamente ajudando os militares a identificarem e prenderem seus próprios funcionários.

      Depois das agressões e de negar fazer parte do movimento sindical, Lúcio e Amauri foram levados até uma Chevrolet Veraneio azul, que estava estacionada dentro do complexo Anchieta, próxima ao Departamento Pessoal.

      Lúcio ficou preso por 48 dias na Cela 2 da sede do Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, junto com os outros funcionários. “Todos estavam com o macacão ou guarda pó da fábrica [nome dado aos jalecos utilizados pelos trabalhadores]. Eu mesmo, até os 48 dias estava com o macacão da Volkswagen”, relembra. As agressões, segundo ele, ocorreram diariamente durante a prisão.

      As memórias de Lúcio estão registradas em depoimento dado ao Ministério Público Federal em dezembro de 2015. Ele faz parte de um inquérito aberto para investigar de que forma a Volkswagen colaborou com abusos cometidos pelos militares. Autoesporte teve acesso à íntegra do inquérito e dos depoimentos, além de ter entrevistado pessoalmente Lúcio Bellentani.

      Antiga sede do DOPS de São Paulo, na região da Luz, é hoje o Memorial da Resistência — Foto: Divulgação

      A peça central no depoimento de Lúcio aos procuradores é o Coronel Rudge. Nascido em 1926, Rudge foi Diretor da Polícia Civil e assessor do Ministro da Justiça, Juracy Magalhães (que assumiu a pasta em 1965 e foi um dos responsáveis pela instauração da censura no país), antes de se tornar Gerente da Divisão de Segurança Industrial da Volkswagen. O “Coronel” ficou no cargo até se aposentar, em 1991.

      Rudge era visto com receio pelos funcionários da montadora. “A gente via ele sempre andando por dentro da fábrica. (…) Ele era bastante jovem também. Era magro, estatura alta, loiro, andava sempre com um blazer meio marrom. Era uma figura temida pela peãozada. A peãozada olhava com um certo receio para ele. (…) Quando chegava alguém da segurança na seção, ficava aquele clima de suspense”, conta Lúcio.

      Segundo o relato de Lúcio Bellentani, o Coronel Rudge não agrediu os funcionários, mas estava presente na sala do Departamento Pessoal enquanto os militares realizavam o interrogatório violento. “Os policiais do DOPS me deram tapa, me deram chutes e me esmurraram”, descreve o ex-funcionário. Questionado se Rudge ou outro representante da Volkswagen também os agrediu, ele afirma: “Não, da empresa, não. Mas, eles assistiram. O próprio Coronel Rudge”.

      Relatórios indicam a contribuição da Volkswagen na repressão a trabalhadores durante a ditadura militar (Foto: Divulgação) — Foto: Auto Esporte

      A atuação de Lúcio em favor de melhores condições aos trabalhadores começou na própria Volkswagen, pouco antes de ser convidado para integrar o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele era responsável por organizar o trabalho político-sindical dentro da fábrica. Logo após o golpe militar de 1964, o Partido decidiu adotar uma postura de resistência pacífica ao regime, criando laços com os sindicatos legalizados e apoiando o MDB, único partido de “oposição” que foi permitido existir após a instauração dos Atos Institucionais que cassaram políticos e extinguiram organizações políticas.

      Apesar de as prisões terem sido feitas dentro da linha de produção, o ex-funcionário afirma que a Volkswagen não deu informações à sua esposa. “Chegou a um ponto em que a minha esposa ia todo dia na fábrica querendo saber o meu paradeiro. E a fábrica dizia que não tinha conhecimento. Ela só sabia que eu havia ingressado no trabalho no dia 28, às 16 horas”, afirma.

      Foi apenas quando ela solicitou os documentos do seguro de vida de Lúcio que recebeu a informação de seu paradeiro. Quando questionou no DOPS sobre a presença do marido na prisão da política, ouviu: “Ele ainda está vivo”. Foi quando o casal se reencontrou pela primeira vez desde aquele 28 de julho.

      Quando foi solto, Lúcio aguardou cerca de um ano até ser julgado inocente na primeira instância. Porém, um recurso reverteu a decisão e ele foi condenado a mais dois anos de prisão.

      “Quando fui solto, no dia seguinte me apresentei na Volkswagen. Deram baixa na carteira, me indenizaram, pagaram tudo”, diz. Ele afirma que a montadora não alegou um motivo específico para a demissão. “Simplesmente me demitiu”, relembra. Com o dinheiro da rescisão, Lúcio decidiu comprar um carro. Optou por um Volkswagen Fusca. Escolheu pelas qualidades do modelo que ele conhecia em detalhes. E relevou as memórias ruins que a marca poderia trazer.

      Sede da Volkswagen em São Bernardo do Campo — Foto: Divulgação

      Em seu depoimento ao Ministério Público, o operário enfatizou a importância de que relatos como o dele possam vir à tona para que os brasileiros conheçam a sua história e não voltem a repeti-la.

      “Eu sou um dos milhares que sofreram. E talvez tenha sofrido muito menos que muitos outros. É necessário que a nossa juventude saiba o que ocorreu nesse país. O que representa a liberdade de hoje. O que representa hoje podermos falar de público. E que essa verdade ela venha e faça parte da história do nosso país. Faça parte do currículo escolar dessa pátria para que isso não se repita. E que a dignidade do povo brasileiro seja resgatada. Essa é a minha grande preocupação”, disse, enxugando as lágrimas.

      Bellentani faleceu de causas naturais em 19 de junho de 2019. Um ano e três meses antes de um acordo histórico ser firmado entre a montadora e o Ministério Público Federal.

      Segundo os promotores, o objetivo do acordo é “garantir a revelação da verdade, a preservação e divulgação da memória”. Para isso, a montadora se comprometeu a fazer declarações públicas sobre o assunto em jornais de grande circulação, além de pagar R$ 36,3 milhões. Desse total, R$ 16,8 milhões irão para as vítimas da perseguição ou seus sucessores. O restante será investido em “projetos de promoção da memória e verdade em relação aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar”, além de pesquisas sobre o assunto.

      “O enfrentamento do legado de violações aos direitos humanos praticadas por regimes ditatoriais é um imperativo moral e jurídico. O Brasil, infelizmente, segue como um caso notável de resistência à promoção ampla dessa agenda e, não por acaso, ecoam manifestações de desapreço às suas instituições democráticas.

      No mundo, por outro lado, são ainda raros os episódios de empresas que aceitam participar de um processo dessa natureza e rever suas responsabilidades pela colaboração com regimes autoritários”, dizem os procuradores e promotores responsáveis pelo caso.

      Funcionários da Volkswagen na linha de montagem do Fusca (Foto: Volkswagen do Brasil) — Foto: Auto Esporte

      Em nota, a montadora afirmou que o acordo faz “parte da revisão de sua história durante o regime da ditadura militar no Brasil. Com este acordo, a Volkswagen quer promover o esclarecimento da verdade sobre as violações dos direitos humanos naquela época”.

      Lamentamos as violações que ocorreram no passado. Estamos cientes de que é responsabilidade conjunta de todos os atores econômicos e da sociedade respeitar os direitos humanos e promover sua observância. Para a Volkswagen AG, é importante lidar com responsabilidade com esse capítulo negativo da história do Brasil e promover a transparência”, disse, em nota Hiltrud Werner, membro do Conselho de Administração da Volkswagen AG.

      Essa não é a primeira vez que a empresa decidiu revisitar seu passado para reparar erros históricos. A própria sede alemã já havia iniciado pesquisas sobre sua contribuição com o nazismo. Anos depois, deu início à pesquisa com o professor Christopher Kopper sobre os abusos cometidos durante a ditadura brasileira.

      Especialistas consideram a atitude da Volkswagen histórica, já que é a primeira vez que uma grande empresa decide prestar contas por sua participação direta ou indireta em apoio à ditadura militar no Brasil. Ainda assim, grupos que lutam por reparações do Estado consideram que o acordo assinado foi insuficiente.

      Uma das principais críticas é que a empresa se recusou a reconhecer qualquer responsabilidade própria ou de seus dirigentes durante os episódios de prisões de funcionários da empresa, além de se negar a criar um espaço de memória com caráter educativo.

      Tais locais são comuns em países que enfrentaram graves violações de direitos humanos. Na própria Alemanha, prédios que abrigavam o aparato nazista se transformaram em museus e espaços com indicações históricas sobre o período. No Brasil, a antiga sede do DOPS de São Paulo deu lugar ao Memorial da Resistência, com informações sobre os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura.

      Memorial do Holocausto na cidade de Berlim — Foto: Wikimedia Commons

      Como o senhor avalia o acordo?
      Estou muito feliz. Ele segue as recomendações do meu relatório, reconhecendo a responsabilidade corporativa pela prisão e pelo tratamento brutal dos trabalhadores da Volkswagen pelo DOPS.

      O valor que a montadora se comprometeu a pagar é suficiente para reparar os danos causados?
      A compensação para os 62 trabalhadores é justa e comparável à compensação de ex-trabalhadores escravos durante o regime nazista na Alemanha

      Qual é o impacto deste acordo considerando que boa parte das vítimas já faleceu?
      Lamento muito que o processo tenha demorado muito para Lúcio Bellentani e para outro trabalhador da Volkswagen falecido, Heinrich Plagge. Mas as viúvas e filhos das vítimas falecidas receberão a compensação no lugar de seus maridos e pais.

      O historiador Christopher Kopper, que ajudou a produzir relatório sobre a Volkswagen — Foto: Divulgação

      O acordo poderia ter sido feito antes ou processos como esse tendem a levar tantos anos para serem concluídos?
      Acho que o processo e o acordo poderiam ter corrido mais rápido, uma vez que os fatos já estavam na mesa após a divulgação do meu relatório em dezembro de 2017.

      Por outro lado, a Volkswagen se tornou a única empresa a conduzir um processo como este relacionado à ditadura militar brasileira. Como avalia esta postura?
      Acho que a Volkswagen agiu da maneira certa. De fato, a Volkswagen é a primeira empresa que reconhece sua responsabilidade pela cooperação com ditaduras nos países latino-americanos. O papel pioneiro da Volkswagen merece reconhecimento público. Outras empresas no Brasil deveriam seguir este exemplo e indenizar seus empregados perseguidos por qualquer dano resultante de sua colaboração com ditaduras militares. Este acordo é um reconhecimento da dolorosa verdade histórica e um reconhecimento do sofrimento humano sob a ditadura militar.

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